terça-feira, 4 de dezembro de 2012

domingo, 12 de junho de 2011

Observação

Não olhar perto demais
á não ser para ver distorcido
cobrir o teu banho
com a toalha que enxuga
e que vejam somente tuas pernas
nunca teus olhos
e nem tua pele
basta o movimento
que ilustra tua vontade
e que se escreva depois
sobre a visão deturpada
e necessária
afim de se manter um certo encanto.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Como será. Quem será esta pessoa que em noventa ou cem anos á partir deste exato momento, olhando pra esta mesma parede, um dia imaginará que eu, com meus olhos vivos aqui estava á pensar, e que assim como ela também tinha o coração apertado e a ilusão que se tinha muito tempo e que era infinito, que era pra sempre? Serão estas paredes as mesmas em cem anos?
Penso que o mundo é cíclico e isto um pouco me assusta. Meu avô, hoje internado em um quarto de hospital clamando por sua mãe como quando criança, um touro de coração inatingível por toda a vida criança de novo se encontra. E assim como meu avô, o avô de seu avô, e todos os avôs do mundo que antes de partirem também olharam pra alguma parede e se questionaram, e envelheceram, e por aqui não ficaram.
Se olharmos de perto, não vai fazer sentido. Não vai. Por isto mesmo é que eu quero gritar, correr, sentir o vento na cara. Experienciar o que é mais intenso. Amar. Sentir-me impotente perante este coração que insiste em mandar apesar de parecer fraco, pra que um dia mais á frente quando olhar para a mesma parede ela se torne uma tela de cinema e nela tenha minhas lembranças para projetar.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

tudo que me falta é o tempo
eu
que venero esta cidade grande
e ela me engole!
me torna escasso e
distancia, distância
á qual eu não me adapto
não me motorizo!
o tempo,
que á princípio parece infinito
é o que mais me pressiona
dentro de sua escassez
não consigo ser inteiro
faltam partes minhas
cada amigo fica com um braço
uma perna
um dedão
o meu coração
espero que todos entendam
é onipresente
carente
não tenho opção
não vivo somente de mim
tudo que está fora também me leva
e só se engana quem pensa que é dono de si!
vou continuar aqui
escrevendo estes versos cafonas
que até que arranje
meios melhores
são a tentativa
mais próxima
de me tornar mais
inteiro

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Foi quando atravessando a rua
como mariposa se atraiu á luz do
neon piscante do lugar decadente
e pensou
como o falho e inconstante
lhe chamavam mais atenção
havia um certo magnetismo
naquela luz que por falta de força piscava
com medo
percebeu que poderia
facilmente escolher o caminho mais árduo
atraído pela beleza
da tristeza
e a estética do árido
seu coração já não mais lhe
pertencia
e tudo que podia ver era sua
própria sombra
projetada na calçada suja
cada vez que aquela luz piscava




sexta-feira, 23 de abril de 2010

O método


Certa vez escutara sobre o método. Não que houvesse necessariamente um trauma. Entendia um pouco da psicologia humana, mas não achava possível entender completamente o mecanismo do funcionamento da mente, talvez a de um macaco ou a de uma anta fossem mais fáceis por serem mais simples. Na verdade a questão permanecia obscura, não conseguia ainda definir para si mesmo o que era, enfim, traição. Em períodos mais libertinos de sua existência já havia feito o papel da puta, Havia beijado vários e várias em uma só noite, só por diversão, e não que isto o levasse às vias de fato que levam á procriação, mas estava longe de ter sido um celibatário. Claro que toda a combustão era nutrida por combustíveis já utilizados há séculos, na maioria das vezes, conhecidos como desinibidores ou embelezadores, como o álcool, por exemplo. Achava até ser bem moderno, entendia o namoro á três, a libertinagem, o desapego, tudo isto enquanto teoria, o que parecia bastante interessante no caso de enjoar do arroz e feijão. Mas apesar de histórico e da teoria, só sabia de uma coisa: a cena não lhe havia feito bem. Não conseguia digerir aquilo. O método, afinal, consistia no exercício de se congelar mentalmente a cena causadora do trauma, encarar o bicho de frente, e desfrutar de uma vida sem traumas e neste caso, sem ciúmes.

Deitara no divã já há alguns minutos. Durante todo o caminho pensara em como começar a sessão, o que dizer áquela mulher, fato este que ao longo dos meses havia se tornado uma questão torturadora. Cada vez que se sentava em frente á ela ficavam se olhando por longos minutos, que pareciam horas. Nada vinha á sua mente, e a pressão que o olhar curioso da mesma exercia sobre ele o deixava congelado, o que causava ainda mais ansiedade, e nos dias em que realmente achava estar bem, acabava tendo que inventar algum perrengue fictício só pra ter papo, o que acabava se tornando real dada a dramaticidade da interpretação e da fé cênica trazida dos tempos de ator amador, cuja frustração pela falta de talento também já havia sido abordada na terapia.

Ela, a psicóloga, que não era velha mas já entrara na meia idade, usava roupas largas com motivos indígenas e estava um pouco acima do peso. Usava aqueles colares de pedras e madeira, um certo ar de intelectual tupiniquim, com óculos na ponta do nariz e um olhar de matrona. Pediu então que fechasse os olhos e se concentrasse. Trouxesse, lá do fundo da mente, a cena, a situação passada que tanto lhe aborrecia e teimava em não ir embora. De acordo com o método, a cena deveria ser revivida em preto e branco e, na hora do trauma em si, no ápice do acontecimento, pausada e observada por alguns momentos como se fosse um filme em slow motion, até que seu coração, disparado pelo trauma, suas mãos suadas e a tremedeira fossem passando naturalmente e a ansiedade diminuísse. Começou então á lembrar da noite fatídica. Na verdade, neste ponto já queria rebobinar o filme, dar stop de uma vez, e que se lascasse a pausa. Mas, como tudo que não se quer ver exerce uma atração incomensurável sobre nós, um magnetismo que vai contra a gravidade do fato em si, não conseguiu tirar os olhos da cena. Pronto, o momento da pausa! Quando os lábios se tocam! A cena até seria bonita, se ele mesmo fosse o codjuvante do tão querido protagonista. Quase romântica, caso fosse fato isolado e se abstraísse o ambiente todo em volta e as caras tortas. Observou aquilo, prestou atenção nas expressões. Era como se tudo houvesse calado e não conseguisse mais falar pela boca, fosse dar um grito pela barriga, aquela coisa parada perto do estômago e que se saísse causaria um estrago, incontrolável, demasiado humana. Suas pernas ficaram sem força. Este, pensou, deveria ser o momento em que os sinais de ansiedade deveriam começar, e em seguida melhorar, o que não sucedeu. Algo estava errado. Como num estalo, abriu os olhos. Olhou em volta e enxergou tudo mais claro dentro da sala. A terapeuta e sua habitual cara de "isto é realmente muito interessante" dos terapeutas, olhava curiosa. Sentiu uma euforia, uma aceleração. Fora de compasso, sentia como se alguém houvesse sentado no controle remoto em cima do sofá e apertado o botão de avançar com a bunda, mas que acelerava somente seu próprio personagem e mais nada em volta. Sentiu um odor forte que antes passara despercebido. Sentia agora um outro frio na barriga. Num gesto incontrolável se levantou, e de pernas moles foi até a psicóloga, segurou seu rosto com as duas mãos e lascou-lhe um beijo de língua. Um beijo nervoso. A coitada nem teve como reagir. Segurou com as duas mão os braços da poltrona onde estava sentada, apertou o couro com suas unhas e ficou com a cara vermelha, como quem tem muito ódio ou se asfixia, ou lhe fosse sugada toda a energia pela boca. O corpo pulava tentando se desvencilhar, os olhos abertos, esbugalhados.
Soltou a pobre coitada, bateu com a mão na maçaneta e saiu correndo. Desceu as escadas do prédio onde se encontrava o consultório e parecia ter o demônio no corpo. Era uma euforia irreconhecível, quase um desespero prazeroso. Uma sensação dionisíaca. Saiu correndo pelas ruas do centro antigo, a cabeça inclinada pra frente e os passos agora já firmes. Era horário de almoço e a rua estava cheia.
Quando o engraxate levantou a cabeça, achou que algo de ruim estivesse acontecendo, um assalto talvez. Manteve as mãos no sapato e com olhos assustados olhou direto ao que então achava ser a ameaça, que por sua vez não pensou duas vezes, aliás, nem pensou, dado o momento irracional: abaixou-se e lascou um beijo no engraxate, que não sabia se segurava o pé do cliente, o boné, ou se aproveitava o beijo. Largou o pé do cliente, que saiu correndo e xingando, e tentou empurrar o maluco que o havia agarrado. O beijo fora mais demorado que o da psicóloga, talvez pelo fato do predador ser homossexual, característica esta que até agora não se sabe sobre a presa. Quando o franzino engraxate já não lutava mais, deixando a dúvida inclusive se gostava ou não do ataque, soltou o rosto do jovem todo babado e saiu correndo novamente.
Correu enfim como um louco, um desvairado em busca de um beijo, uma necessidade brutal da troca de fluídos, independente de quem fosse, bonito ou feio, homem ou mulher, humano ou animal. Até um cachorro chegou a beijar, um rotweiller com cara de mau que arrastava seu dono pela coleira só pra lamber a cara e a língua do descontrolado e rosnou somente quando o seu dono finalmente foi beijado. Beijou todo mundo nos pontos de ônibus, os taxistas, os malabaristas de semáforo e os amarelinhos do trânsito. Era só um semáforo fechar e já jogava metade do corpo pra dentro dos carros e tascava selinhos e beijos de língua nos mais distraídos. Aparentemente beijava bem. Alguns até aproveitavam por um tempo mais longo que o normal, geralmente jovens senhoras que conseguiam inverter a situação e fazê-lo correr.
A ânsia era tanta que quando não encontrava alguém passava a beijar o próprio braço, as mãos, e saía correndo com a língua entre os dedos. Naquele dia não parou pra comer, incansável. Entre uma bitoquinha e outra lembrou-se do escritório, pois lá deveria estar, e só se lembrou porque minutos antes beijara uma senhora que desconfiava ser a esposa do chefe.

É verdade que em vários momentos correu pra fugir. Correu de senhoras conservadoras, que quando conseguiam se desvencilhar da rota do predador gritavam sobre os riscos das doenças carregadas pela saliva, como o sapinho, por exemplo, e pela falta de vergonha de se beijar com a língua na frente das crianças. Correu de policiais homofóbicos e de neonazistas, que primeiro beijavam e depois batiam.
Chegou enfim em frente ao prédio onde trabalhava. Olhou para o alto e respirou. Pensou, por um mísero instante de clareza de raciocínio, que não seria muito inteligente beijar seu chefe. Respirou, apertou as mãos na tentativa de auto controle, entrou no hall de entrada e deu um selinho de meia boca no zelador, que fazia vez de porteiro, e não entendendo nada continuou separando as correspondências, como já fazia há quarenta anos, entregues pelo já conhecido carteiro que também já fora beijado horas antes, e por sinal havia gostado. Entrou correndo no elevador, vazio por muita sorte, apertou o número do andar desejado e logo veio o ímpeto que o levou direto ao espelho de fundo. Beijou-se ardentemente, de olhos abertos, uma vez que somente pelo toque perceberia que aquilo não passava de um vidro. Quando a porta se abriu, segurou com o pé. Encarou sua imagem no espelho babado e não se reconheceu.

Respirou fundo. Neste dia não cumprimentou a recepcionista, como sempre fazia. Passou olhando para o lado oposto, e assim que avistou a mesinha com o café não teve dúvidas, saiu com o copo de plástico tapando a boca enquanto sua língua enlouquecida lutava pra sair e consequentemente limpava todo o copo por dentro. Sua mesa, bem ao fundo, o esperava como todo o dia fazia, um bicho de vários braços e cabeças de papel pronta para engoli-lo ao som da trilha sonora bizarra da voz do seu chefe pressionando sem dó. E foi neste exato momento que a trilha começou: como que sentindo sua presença de longe, um cachorro atrás da cadela no cio, seu chefe gritou lá dos confins da sala de reuniões chamando seu nome. O frio na espinha veio em seguida. Como falar com seu chefe quando sua língua não queria falar? Além da vergonha, certamente seria processado por assédio á um homem de sessenta e vários anos. E, também como fazia diariamente, seguiu o chamado como um cão adestrado e pra lá foi. Da porta da sala de reunião avistou a enorme barriga do seu chefe espremida contra a mesa lotada de gente. Sua língua agora estrebuchava dentro do copo. Teve vontade de chorar, de vomitar, quando percebeu o que estava em iminência de acontecer. Que pelo menos o beijasse na boca e não na barriga. Quando adentrou todos olharam. “Fsdnjndadashdu%$@*#¨¨!”, falou. “Mas o senhor pode me explicar o que...”, dizia seu chefe quando subitamente sentiu a língua estranha dentro da boca. Foi uma gargalhada geral. Apesar do ar carrancudo do chefe, a cena era muito absurda pra passar despercebida e para azar do funcionário que provavelmente teria suas horas contadas dentro da empresa. Olhou seu chefe com olhos esbugalhados. Tentava afastar seu corpo mas a boca não desgrudava. O velho até tentou mordê-lo, mas a língua estava tão rígida que era impossível. Pareciam dois cachorros grudados. Quando conseguiu tirar a língua de dentro de seu superior, já sem fôlego, não sabia se corria pra esquerda ou direita, e percebendo que não adiantariam maiores explicações, fugiu do escritório sob os aplausos dos colegas de trabalho que achavam ser aquele algum ato de rebeldia contra a empresa.

Desceu quinze andares de escada afim de evitar maiores contatos. Já estava zonzo. Tudo que queria era sua casa. Apesar da agitação que insistia em aumentar, abaixou a cabeça e seguiu pelo meio da multidão. Guiava-se pelo chão, pelas calçadas que já conhecia, pelas esquinas já conhecidas. De cabeça baixa entrou no prédio, cumprimentou o porteiro e ousou levantar a cabeça novamente pra olhar. Aproveitou o elevador que já estava no térreo. Olhou-se no espelho novamente, agora já conseguia. Colocou a chave na porta e girou. Foi recebido pelo sorriso que considerava o mais lindo, olhou aqueles olhos brilhantes e enxergou. Aproximou delicadamente seus lábios dos dele e os tocou. Pela primeira vez durante todo o dia deu um beijo.

domingo, 22 de novembro de 2009

Hoje lembrei da Paquita. Paquita era nossa cadelinha, uma pinscher de raça pura e pêlos caramelo, doce e obediente como uma pequena princesa canina. Paquita era um exemplo de cadela, com fome, ficava de pé e pulava como uma bailarina nas pontinhas das patas traseiras tentando chamar atenção, uma graça. Porque a batizamos com este nome na verdade não sei, que me lembre todas as paquitas, as da Xuxa, eram loiras, não sei se de nascença, e não havia uma sequer que tivesse cabelos castanhos ou caramelo. Aliás, nunca entendi porque chamavam paquitas e não xuxetes.
Certo dia, um alvoroço no quintal. Paquita tremia toda, como todos os pinschers o fazem, e olhava para o alto com olhos aterrorizados. Sim, quem tem cachorro sabe enxergar tudo pelos olhos do bicho. Sabemos quando estão rindo, chorando ou fazendo um cú doce. A situação parecia grave, o Rex, um outro cachorro sem raça definida que tínhamos, grande e preto, e o Lulu, assim chamado por pura falta de criatividade e que era da raça Lulu da Pomerania, também olhavam para o alto mas com um certo ar de desdém. Eram machos, Paquita era fêmea, e delicada, quase uma bailarina. Quando saio, do alto de um poste de madeira que meu avô plantara no meio do quintal e servia de suporte pras várias gaiolas de canários e sabiás que ele tinha, me olhava um urubú. O bicho era feio. Com as asas abertas e pescoço caído, olhava ameaçadoramente pra baixo ameaçando a pobrezinha, que tremia. Não que Paquita não fosse corajosa, já havia, apesar de sua delicadeza, demonstrado muita bravura, e até um pouco de bizarrice. Certa vez protegia tanto a entrada de sua casinha que decidi investigar porque tamanha movimentação. Os olhos da bichinha estavam esbugalhados, parecia que tinha cheirado, e um certo ar de culpa pairava em seu semblante. Quando cheguei perto da casa, Paquita saiu correndo e deixou o caminho livre. Peguei a casa com as duas mãos, olhei para dentro, e chacoalhei: uma cabeça de pomba saiu rolando e quase bateu na minha testa; o corpo, só Deus sabe onde foi parar. Paquita tornara-se uma assassina. Pois bem, voltando ao urubú, dada a gravidade da situação, quis proteger os meus bichos. Coloquei a Paquita dentro de casa, o Rex e o Lulu dentro do quartinho de ferramentas de meu avô, peguei a mangueira e mirei direto no bicho. A coisa preta voava de lá pra cá, caia em cima do telhado, pulava no quintal, e todo mundo gritava. Vinha correndo para o meu lado, escorregava no piso molhado e caía no chão, depois voava de volta lá pra cima do poste. O bicho me dava calafrios. Só me lembro que o bicho demorou dois dias pra ir embora, ficava a maior parte do tempo em cima do telhado e não mais no poste, sabia que já estava manjado. Tinha cara de malandro e talvez estivesse fazendo aquilo somente pra apurrinhar, uma vez que Paquita várias vezes, talvez por distração, ou por coragem assassina mesmo, saiu para o quintal e não foi devorada. Paquita, tadinha, morreu com uma pancada na cabeça, não muito tempo depois. O veterinário falou que alguém, ou ela mesma durante um ataque de fúria, teria golpeado a pobrezinha, que teve uma espécie de derrame e sangramento intra-craniano. Chorei meses seguidos, as primeiras semanas me trancafiei no quarto e chorava o dia inteiro. Mas Paquita havia deixado uma descendente, a Preta, também chamada assim por pura falta de criatividade pois a mesma era pretinha pretinha, o que na verdade era estranho, sendo filha de Paquita, cor de caramelo, e de Lulú, que era champagne ou quase branco. Rex já havia morrido de velhice, já estava lá antes mesmo de eu nascer, e Lulú morreu vários anos depois, tão velhinho que já estava até cego e com "dentes gavetinha", de quando o maxilar inferior fica protuberante e os dentinhos de baixo ficam pra fora. Perdeu toda beleza de outrora. A Preta viveu com minha mãe muito tempo e morreu dezessete (!) anos depois já no apartamento para o qual minha família havia mudado, lá no Butantã. Eu já não morava mais lá, já morava aqui no apartamento52, e achei estranho ter chorado apenas dias depois de sua morte ocorrida ao amanhecer de um dia ensolarado e tomando um solzinho que entrava pela janela como era de seu costume. Estas foram minhas primeiras experiencias com a morte.

Na verdade lembrei de Paquita por causa de um urubu. Não aquele de anos atrás, mas de um outro que conheci ontém mesmo. Atravessando uma das ruas de Higienópolis, que, apesar de não ser o meu bairro, por motivos de força maior eu adotei como meu, por pura preferência mesmo, cheguei do outro lado da rua e, ao pular pra cima da guia quase surtei, apesar de estar muuuuuuuito bem acompanhado: um urubu andava de lado, meio capenga, e olhando com ar de desconfiado vinha bem na nossa direção. A primeira coisa que me veio á cabeça era se aquilo era sinal de mau agouro, só não fiz o sinal da cruz porque não sou religioso, e estando muuuuuuito bem acompanhado daquele jeito seria até tolice achar que algo pudesse ficar ruim, porque coisa ruim é não estar muuuuuuito bem acompanhado como eu estava. Desviamos, passamos bem próximo ao bicho que permanceceu imóvel, e continuamos a subir a rua, olhando de rabo de olho pra ver se ficava pra trás, até que uma anta, no sentido figurado, empurrando um carrinho de carregador de supermercado vira a esquina de baixo e, ao ver o bicho indefeso, acelerou feito Ayrton Senna e veio empurrando o bicho até a outra esquina, onde nós estávamos, e o bicho, tadinho, desesperado, corria todo capenga. Continuaram a perseguição até o bicho sumir rua afora. E hoje, novamente muuuuuito bem acompanhado, não é que encontro o pobre coitado a vagar novamente pela calçada?! Uma madame, toda botocada, abre o vidro do carro blindado: "Pelo amoooooorrrrr de Deeeeeus, o coitadinho está toooooooodo machucado, pobrezinhoooooo!", e de repente todos em volta se solidarizaram com o bicho, que sumiu novamente, capenga.

De resto, hoje voltei pra minha casa, roupa de dois dias atrás grudada no corpo apesar dos vários banhos tomados. Motivos de força maior ás vezes nos obrigam á isto. Muuuuuito bons motivos nos obrigam á isto.

E fica aqui registrada uma de minhas várias memórias de infância.