Certo dia, um alvoroço no quintal. Paquita tremia toda, como todos os pinschers o fazem, e olhava para o alto com olhos aterrorizados. Sim, quem tem cachorro sabe enxergar tudo pelos olhos do bicho. Sabemos quando estão rindo, chorando ou fazendo um cú doce. A situação parecia grave, o Rex, um outro cachorro sem raça definida que tínhamos, grande e preto, e o Lulu, assim chamado por pura falta de criatividade e que era da raça Lulu da Pomerania, também olhavam para o alto mas com um certo ar de desdém. Eram machos, Paquita era fêmea, e delicada, quase uma bailarina. Quando saio, do alto de um poste de madeira que meu avô plantara no meio do quintal e servia de suporte pras várias gaiolas de canários e sabiás que ele tinha, me olhava um urubú. O bicho era feio. Com as asas abertas e pescoço caído, olhava ameaçadoramente pra baixo ameaçando a pobrezinha, que tremia. Não que Paquita não fosse corajosa, já havia, apesar de sua delicadeza, demonstrado muita bravura, e até um pouco de bizarrice. Certa vez protegia tanto a entrada de sua casinha que decidi investigar porque tamanha movimentação. Os olhos da bichinha estavam esbugalhados, parecia que tinha cheirado, e um certo ar de culpa pairava em seu semblante. Quando cheguei perto da casa, Paquita saiu correndo e deixou o caminho livre. Peguei a casa com as duas mãos, olhei para dentro, e chacoalhei: uma cabeça de pomba saiu rolando e quase bateu na minha testa; o corpo, só Deus sabe onde foi parar. Paquita tornara-se uma assassina. Pois bem, voltando ao urubú, dada a gravidade da situação, quis proteger os meus bichos. Coloquei a Paquita dentro de casa, o Rex e o Lulu dentro do quartinho de ferramentas de meu avô, peguei a mangueira e mirei direto no bicho. A coisa preta voava de lá pra cá, caia em cima do telhado, pulava no quintal, e todo mundo gritava. Vinha correndo para o meu lado, escorregava no piso molhado e caía no chão, depois voava de volta lá pra cima do poste. O bicho me dava calafrios. Só me lembro que o bicho demorou dois dias pra ir embora, ficava a maior parte do tempo em cima do telhado e não mais no poste, sabia que já estava manjado. Tinha cara de malandro e talvez estivesse fazendo aquilo somente pra apurrinhar, uma vez que Paquita várias vezes, talvez por distração, ou por coragem assassina mesmo, saiu para o quintal e não foi devorada. Paquita, tadinha, morreu com uma pancada na cabeça, não muito tempo depois. O veterinário falou que alguém, ou ela mesma durante um ataque de fúria, teria golpeado a pobrezinha, que teve uma espécie de derrame e sangramento intra-craniano. Chorei meses seguidos, as primeiras semanas me trancafiei no quarto e chorava o dia inteiro. Mas Paquita havia deixado uma descendente, a Preta, também chamada assim por pura falta de criatividade pois a mesma era pretinha pretinha, o que na verdade era estranho, sendo filha de Paquita, cor de caramelo, e de Lulú, que era champagne ou quase branco. Rex já havia morrido de velhice, já estava lá antes mesmo de eu nascer, e Lulú morreu vários anos depois, tão velhinho que já estava até cego e com "dentes gavetinha", de quando o maxilar inferior fica protuberante e os dentinhos de baixo ficam pra fora. Perdeu toda beleza de outrora. A Preta viveu com minha mãe muito tempo e morreu dezessete (!) anos depois já no apartamento para o qual minha família havia mudado, lá no Butantã. Eu já não morava mais lá, já morava aqui no apartamento52, e achei estranho ter chorado apenas dias depois de sua morte ocorrida ao amanhecer de um dia ensolarado e tomando um solzinho que entrava pela janela como era de seu costume. Estas foram minhas primeiras experiencias com a morte.
Na verdade lembrei de Paquita por causa de um urubu. Não aquele de anos atrás, mas de um outro que conheci ontém mesmo. Atravessando uma das ruas de Higienópolis, que, apesar de não ser o meu bairro, por motivos de força maior eu adotei como meu, por pura preferência mesmo, cheguei do outro lado da rua e, ao pular pra cima da guia quase surtei, apesar de estar muuuuuuuito bem acompanhado: um urubu andava de lado, meio capenga, e olhando com ar de desconfiado vinha bem na nossa direção. A primeira coisa que me veio á cabeça era se aquilo era sinal de mau agouro, só não fiz o sinal da cruz porque não sou religioso, e estando muuuuuuito bem acompanhado daquele jeito seria até tolice achar que algo pudesse ficar ruim, porque coisa ruim é não estar muuuuuuito bem acompanhado como eu estava. Desviamos, passamos bem próximo ao bicho que permanceceu imóvel, e continuamos a subir a rua, olhando de rabo de olho pra ver se ficava pra trás, até que uma anta, no sentido figurado, empurrando um carrinho de carregador de supermercado vira a esquina de baixo e, ao ver o bicho indefeso, acelerou feito Ayrton Senna e veio empurrando o bicho até a outra esquina, onde nós estávamos, e o bicho, tadinho, desesperado, corria todo capenga. Continuaram a perseguição até o bicho sumir rua afora. E hoje, novamente muuuuuito bem acompanhado, não é que encontro o pobre coitado a vagar novamente pela calçada?! Uma madame, toda botocada, abre o vidro do carro blindado: "Pelo amoooooorrrrr de Deeeeeus, o coitadinho está toooooooodo machucado, pobrezinhoooooo!", e de repente todos em volta se solidarizaram com o bicho, que sumiu novamente, capenga.
De resto, hoje voltei pra minha casa, roupa de dois dias atrás grudada no corpo apesar dos vários banhos tomados. Motivos de força maior ás vezes nos obrigam á isto. Muuuuuito bons motivos nos obrigam á isto.
E fica aqui registrada uma de minhas várias memórias de infância.