domingo, 22 de novembro de 2009

Hoje lembrei da Paquita. Paquita era nossa cadelinha, uma pinscher de raça pura e pêlos caramelo, doce e obediente como uma pequena princesa canina. Paquita era um exemplo de cadela, com fome, ficava de pé e pulava como uma bailarina nas pontinhas das patas traseiras tentando chamar atenção, uma graça. Porque a batizamos com este nome na verdade não sei, que me lembre todas as paquitas, as da Xuxa, eram loiras, não sei se de nascença, e não havia uma sequer que tivesse cabelos castanhos ou caramelo. Aliás, nunca entendi porque chamavam paquitas e não xuxetes.
Certo dia, um alvoroço no quintal. Paquita tremia toda, como todos os pinschers o fazem, e olhava para o alto com olhos aterrorizados. Sim, quem tem cachorro sabe enxergar tudo pelos olhos do bicho. Sabemos quando estão rindo, chorando ou fazendo um cú doce. A situação parecia grave, o Rex, um outro cachorro sem raça definida que tínhamos, grande e preto, e o Lulu, assim chamado por pura falta de criatividade e que era da raça Lulu da Pomerania, também olhavam para o alto mas com um certo ar de desdém. Eram machos, Paquita era fêmea, e delicada, quase uma bailarina. Quando saio, do alto de um poste de madeira que meu avô plantara no meio do quintal e servia de suporte pras várias gaiolas de canários e sabiás que ele tinha, me olhava um urubú. O bicho era feio. Com as asas abertas e pescoço caído, olhava ameaçadoramente pra baixo ameaçando a pobrezinha, que tremia. Não que Paquita não fosse corajosa, já havia, apesar de sua delicadeza, demonstrado muita bravura, e até um pouco de bizarrice. Certa vez protegia tanto a entrada de sua casinha que decidi investigar porque tamanha movimentação. Os olhos da bichinha estavam esbugalhados, parecia que tinha cheirado, e um certo ar de culpa pairava em seu semblante. Quando cheguei perto da casa, Paquita saiu correndo e deixou o caminho livre. Peguei a casa com as duas mãos, olhei para dentro, e chacoalhei: uma cabeça de pomba saiu rolando e quase bateu na minha testa; o corpo, só Deus sabe onde foi parar. Paquita tornara-se uma assassina. Pois bem, voltando ao urubú, dada a gravidade da situação, quis proteger os meus bichos. Coloquei a Paquita dentro de casa, o Rex e o Lulu dentro do quartinho de ferramentas de meu avô, peguei a mangueira e mirei direto no bicho. A coisa preta voava de lá pra cá, caia em cima do telhado, pulava no quintal, e todo mundo gritava. Vinha correndo para o meu lado, escorregava no piso molhado e caía no chão, depois voava de volta lá pra cima do poste. O bicho me dava calafrios. Só me lembro que o bicho demorou dois dias pra ir embora, ficava a maior parte do tempo em cima do telhado e não mais no poste, sabia que já estava manjado. Tinha cara de malandro e talvez estivesse fazendo aquilo somente pra apurrinhar, uma vez que Paquita várias vezes, talvez por distração, ou por coragem assassina mesmo, saiu para o quintal e não foi devorada. Paquita, tadinha, morreu com uma pancada na cabeça, não muito tempo depois. O veterinário falou que alguém, ou ela mesma durante um ataque de fúria, teria golpeado a pobrezinha, que teve uma espécie de derrame e sangramento intra-craniano. Chorei meses seguidos, as primeiras semanas me trancafiei no quarto e chorava o dia inteiro. Mas Paquita havia deixado uma descendente, a Preta, também chamada assim por pura falta de criatividade pois a mesma era pretinha pretinha, o que na verdade era estranho, sendo filha de Paquita, cor de caramelo, e de Lulú, que era champagne ou quase branco. Rex já havia morrido de velhice, já estava lá antes mesmo de eu nascer, e Lulú morreu vários anos depois, tão velhinho que já estava até cego e com "dentes gavetinha", de quando o maxilar inferior fica protuberante e os dentinhos de baixo ficam pra fora. Perdeu toda beleza de outrora. A Preta viveu com minha mãe muito tempo e morreu dezessete (!) anos depois já no apartamento para o qual minha família havia mudado, lá no Butantã. Eu já não morava mais lá, já morava aqui no apartamento52, e achei estranho ter chorado apenas dias depois de sua morte ocorrida ao amanhecer de um dia ensolarado e tomando um solzinho que entrava pela janela como era de seu costume. Estas foram minhas primeiras experiencias com a morte.

Na verdade lembrei de Paquita por causa de um urubu. Não aquele de anos atrás, mas de um outro que conheci ontém mesmo. Atravessando uma das ruas de Higienópolis, que, apesar de não ser o meu bairro, por motivos de força maior eu adotei como meu, por pura preferência mesmo, cheguei do outro lado da rua e, ao pular pra cima da guia quase surtei, apesar de estar muuuuuuuito bem acompanhado: um urubu andava de lado, meio capenga, e olhando com ar de desconfiado vinha bem na nossa direção. A primeira coisa que me veio á cabeça era se aquilo era sinal de mau agouro, só não fiz o sinal da cruz porque não sou religioso, e estando muuuuuuito bem acompanhado daquele jeito seria até tolice achar que algo pudesse ficar ruim, porque coisa ruim é não estar muuuuuuito bem acompanhado como eu estava. Desviamos, passamos bem próximo ao bicho que permanceceu imóvel, e continuamos a subir a rua, olhando de rabo de olho pra ver se ficava pra trás, até que uma anta, no sentido figurado, empurrando um carrinho de carregador de supermercado vira a esquina de baixo e, ao ver o bicho indefeso, acelerou feito Ayrton Senna e veio empurrando o bicho até a outra esquina, onde nós estávamos, e o bicho, tadinho, desesperado, corria todo capenga. Continuaram a perseguição até o bicho sumir rua afora. E hoje, novamente muuuuuito bem acompanhado, não é que encontro o pobre coitado a vagar novamente pela calçada?! Uma madame, toda botocada, abre o vidro do carro blindado: "Pelo amoooooorrrrr de Deeeeeus, o coitadinho está toooooooodo machucado, pobrezinhoooooo!", e de repente todos em volta se solidarizaram com o bicho, que sumiu novamente, capenga.

De resto, hoje voltei pra minha casa, roupa de dois dias atrás grudada no corpo apesar dos vários banhos tomados. Motivos de força maior ás vezes nos obrigam á isto. Muuuuuito bons motivos nos obrigam á isto.

E fica aqui registrada uma de minhas várias memórias de infância.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Quase atropelado, olhei sem acreditar ainda do meio da rua. Teve a audácia de me deixar plantado no meio do caos e entrar no primeiro táxi que passava. Parei o próximo, ainda do meio da rua e entrei, nem olhei se estava vazio. O cara falava árabe comigo, não posso deixar a barba um pouco mais comprida que do usual “italiano”, “frances” e “portugues” logo viro árabe. Eu suava frio, só que de nervoso, ainda era inverno e a temperatura estava em torno dos oito graus positivos apesar de estar no Cairo. De súbito, o táxi pára. Entra um homem alto e bem moreno no banco da frente, feio, devo mencionar, cumprimenta o motorista, bate a porta e logo já começa a me pedir dinheiro, primeiramente num francês, e em seguida em um inglês mais do que toscos. Comecei a berrar com os dois, fiquei macho, disse que queria descer do táxi imediatamente, apesar do frio na barriga e do choro preso de nervoso. Tinha a certeza que deveríamos virar á direita, mas é claro que fomos pra esquerda. Continuei no táxi ainda por uns dez minutos, não acreditava que além de levar um pé na bunda ainda haviam me sequestrado, e além de tudo eram feios. Quando finalmente caiu a ficha e percebi que não iriam parar, fingi que iria abrir a porta e pular. Ele parou o carro, esperou que eu saísse e foi embora. Já fechei os olhos esperando o tiro. Meu coração saía da boca, respirei, olhei em volta, deserto. Deserto de gente, e deserto de deserto mesmo, areia. Vi um portão alguns metros á frente e segui pra lá. E não é que ele havia me deixado lá mesmo, de frente á esfinge que me observava toda lânguida e sem nariz?!

Outra memória de viagem.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009


Com a bochecha direita encostada no balcão do bar, sentia meu corpo inteiro formigando. Horas antes, andando pela cidade com um grupo de espanhóis, entrei no Banco do Brasil pra acompanhar uma conhecida brasileira a tirar dinheiro. Lá dentro, uma figura vestida com saia e blusa indianas, coloridas, cabelo todo encaracolado e avermelhado conversava, alucinadamente, com a caixa do banco vazio, reclamava que sentia saudades do Brasil e dos brasileiros, que não aguentava mais e precisava falar português de qualquer maneira. Olhou pro meu lado, e como tenho imã pra gente doida lá veio ela com seu sotaque nortista, acolhedor, desanuviando os ouvidos da pobre caixa-terapeuta-brasileira-que-mora-em-Amsterda. Deu graças á Deus de ver um brasileiro. Comecei a conversar, ela era interessante e tinha presença de espírito, era bem engraçada. Saímos juntos do banco, nos juntamos ao grupo de espanhóis novamente e fomos andar. Não muito tempo depois, já éramos unha e carne! Por idéia dela, demos um perdido no grupo e sentamos em um bar todo decorado com motivos psicodélicos, todos lá sentados em círculo, no chão, olhando uns para os outros, chapados. Avisei que nunca tinha fumado a mardita. Peguei o cardápio e escolhi a jamaicana, tinha jeito de ser boa e me lembrava praia. Começamos á conversar sobre o Brasil, sobre as praias maravilhosas em contraste daquele dia frio, do seu marido paraguaio que era artista plástico, dos seus dois filhos e seus nomes excêntricos, e eu ria, ria, e dizia estar frustrado porque nada estava acontecendo e que aquele treco não dava barato, uma enganação. Saíndo de lá, andava pelas ruas e até o asfalto eu achava bonito.
Na porta do hostel lá estava ele, um quase príncipe encantado filho de mãe austríaca e pai italiano, todo bem vestido, tudo sob medida, cabelos castanhos claros e pele da cor de jambo, que aliás eu sempre uso como exemplo e nunca ninguém entende que pele é. Pois bem, resolvi puxar um papo, afinal ele já havia me abordado uns dias antes. Me convidou pra jantar ali perto, então lá fui eu, tomei um banho, puxei umas roupinhas "mais ou menos" da mala e dez minutos depois estávamos á caminho do restaurante. Conversamos sobre tudo: família, artes, cinema. Menos de sexo. Incrível ele, mas não se dizia gay. Voltamos pro lobby do hostel, encontrei uns alemães animadíssimos que já há alguns dias faziam uma bagunça divertida no local. Claro que naquela época eu achava engraçado, com vinte anos tudo é engraçaado, e resolvi me juntar á tchurma. Não me lembro muito, só sei que dei umas tragadas numa tora de uns trinta centímetros que ía passando de mão em mão e soltava uma fumaça que empestiou todo o saguão. Ria, ria, ria. O rapaz todo perfeito só observava. Levantei, chamei ele pra fora, falei que estava tonto e comecei a chorar, falei que achava que iria morrer, mas que este não era o problema, pois o pior era como iriam levar meu corpo para o Brasil. Ele me levou pra dentro, me sentou ao lado do balcão do bar e continuou observando. Minha bochecha formigava só de encostar no balcão, estava zonzo mas não parava de pensar como seria o transporte do esquife. Pedi pra deitar no sofá. Ele colocou minha cabeça na sua perna e me fez dormir. Meu vôo de volta ao Brasil seria em algumas horas. Lembro de adormecer olhando pra aquela carinha perfeita alisando minha cabeça. Acordei de madrugada, já na minha cama, e com tempo suficiente para ir ao aeroporto. Vim sentado no banco do meio de três, classe econômica de lá até aqui, um árabe de cada lado e um monte de tranqueiras que trouxe embaixo do banco da frente sem nem poder esticar os pés. Da bicho grilo não escutei mais, havia anotado seu contato mas nunca liguei. Do meu companheiro de farra nem contato eu peguei, mas sempre me vem esta história vez ou outra á cabeça. Sempre me pergunto se estas pessoas algum dia lembram de mim assim como lembro delas. Será?

Primeiro dia de pequenas memórias de viagens...

Aqui no apartamento52, tentativa de concentração enquanto uma travas que escutavam Sarah Brightman com as portas do carro abertas (ninguém merece) agora resolveram tocar Carmina Burana no último volume. Oh, Deus...